Nem todos pensam ou acreditam nas coisas como Charles.
Uma vida inteira de pesquisa, estudo ou diplomas pendurados na parede pouco significam quando o assunto é a mente humana — especialmente a de Charles. Ele era, por falta de definição melhor, um pensador do improviso, um filósofo dos objetos esquecidos. Tinha ideias extravagantes, crenças próprias, uma imaginação que escapava pelas frestas da razão.
Charles consertava tudo — e mais um pouco. Mas não apenas no sentido técnico da palavra. Ele enxergava falhas onde ninguém via, e onde todos veriam fim, ele via recomeço.
Nunca conheci ninguém como ele.
Consertar coisas era seu ofício, sim, mas também sua vocação mais profunda. E de todos os objetos do mundo, havia um que o encantava acima dos demais: o guarda-chuva.
Sim, aquele companheiro subestimado das chuvas apressadas, o escudo das tardes cinzentas, o toldo portátil da esperança em meio ao temporal.
Charles sabia tudo sobre eles. Dos automáticos aos manuais, dos dobráveis de três estágios aos elegantes de madeira entalhada, dos tecnológicos aos mais rústicos. Era como um maestro que conhecia o som exato de cada haste de alumínio. Ele dominava essa arte com uma paixão quase religiosa.
Você já levou um guarda-chuva para consertar?
Conhece alguém que o tenha feito? Se a resposta for sim, ou você é alguém de sorte rara — ou talvez seja um contador de histórias como eu.
Charles costumava dizer que os de capa preta eram “guarda-chuvas”, e os coloridos, “sombrinhas”. Não confundamos. Segundo ele, um objeto com tamanha resiliência e trajetória histórica merecia o nosso mais profundo respeito. Afinal, depois de guerras, revoluções, reinvenções tecnológicas, invernos rigorosos e verões impiedosos, o guarda-chuva ainda permanece conosco.

“Mas por que consertar guarda-chuvas?” Você pode perguntar. “Não é mais fácil comprar um novo?”
Charles apenas sorria com os olhos e respondia:
“E qual é a graça disso?”
Então voltava à sua oficina-ateliê — um misto de garagem, museu e templo. Havia peças espalhadas em bandejas, mecanismos minúsculos em potes de vidro, tecidos de todas as cores e botões que pareciam jóias. O cheiro era de óleo, cola e um tipo de chá exótico que ele preparava com folhas que ninguém mais sabia de onde vinham.
Ele não tomava café. Dizia que provocava um zumbido estranho nos ouvidos, como se o mundo inteiro cochichasse segredos indecifráveis. Preferia chá. Era quase um ritual.
Charles não era inglês, tampouco europeu — apesar da elegância discreta. Era brasileiro, nascido e criado no interior de São Paulo, numa rua sem saída onde as pessoas ainda cumprimentavam umas às outras pelo nome.
Não possuía uma empresa, tampouco funcionários. Oferecia simplesmente sua presença, suas mãos e sua escuta.
Sua clientela era fiel. Senhores esquecidos, senhoras de cabelos brancos, jovens com pressa e estudantes poetas vinham até ele com seus objetos feridos — e também com suas histórias. Havia quem trouxesse o mesmo guarda-chuva desde o tempo da faculdade. Outros vinham com modelos herdados dos pais. E todos saíam com a sensação de que algo mais do que metal e tecido fora restaurado.
Charles não consertava apenas mecanismos. Concertava lembranças, saudades, afetos.
Ele escutava com atenção. Enquanto seus dedos dançavam entre molas e eixos, ele ouvia. E, ao final, dizia sempre:
“Seja bem-vindo. Ou bem-vinda.”
Como quem abre um abraço.
A oficina era um refúgio. Os vizinhos diziam que até os passarinhos pareciam cantar diferente ali por perto. E talvez fosse verdade. Porque, no fundo, as pessoas não vinham apenas pelos guarda-chuvas. Vinham por Charles. Pelo silêncio confortável. Pela sabedoria disfarçada de simplicidade.
E ele, com sua voz mansa, dizia que toda coisa merece uma segunda chance. Que o mundo está cheio demais de descarte e de pressa. Que é bonito dar valor às coisas simples. Que consertar é uma forma de amar.
Dizem que não há mais espaço para homens como Charles. Que o tempo dele já passou.
Mas eu digo: enquanto houver chuva, haverá alguém procurando abrigo.
E enquanto houver alguém disposto a escutar, a remendar e a acolher — haverá também esperança.
Porque no fim das contas, Charles não consertava apenas guarda-chuvas.
Charles também concertava corações.
Gostei taaanto! Já é meu preferido.
Já fiquei imaginando aqui o consertador de guarda-chuvas, como seria fisicamente falando? Se consertar objetos já é uma arte, imaginem a arte de consertar pessoas…
Sim, crônica que instiga a reflexão. Grande Charles, meu xará! Abraço André! .